sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Cuidando do Ambientalista

Cuidando do Ambientalista

Traduzido do livro "The World We Have", de Thich Nhat Hanh,
por Samuel Cavalcante


Um estudante me perguntou “Existem tantas problemas urgentes, o que devemos fazer?” e eu disse “Escolha uma coisa, faça-a muito profundamente e com muito cuidado, então você estará fazendo tudo ao mesmo tempo”.

Muitas pessoas estão cientes do sofrimento da Terra e seus corações estão cheios de solidariedade. Eles sabem o que é necessário fazer e se engajam em atividades políticas, sociais e ambientais para mudar as coisas. Mas, depois de um período de intenso envolvimento, frequentemente muitos se sentem desencorajados por que lhes falta a força necessária para sustentar uma vida de ação. O intelecto sozinho não é suficiente para guiar uma vida de ação solidária. Para efetivamente influenciar o futuro de nosso mundo, precisamos de mais. A verdadeira força não pode ser encontrada no poder, dinheiro ou nas armas, mas em uma profunda paz interior. Quando temos insight suficiente, não nos deixamos apanhar mais pelas muitas situações difíceis. Podemos sair dessas situações muito facilmente. Quando mudamos as nossas vidas cotidianas – a maneira que pensamos, falamos e agimos – mudamos também o mundo. É importante para nós viver de modo a que, em cada momento, estejamos profundamente nele com nossa verdadeira presença, sempre vivos e alimentando o insight do interser. Sem paz e felicidade, não poderemos tomar conta de nós, nem das outras espécies e nem do planeta. Por isso a melhor maneira de cuidar do meio ambiente é cuidar do ambientalista.

Existem muitos ensinamentos budistas que podem nos ajudar a compreender nossa interconectividade com a Mãe Terra. Um dos mais importantes é o Sutra do Diamante, escrito sob a forma de um diálogo entre o Buda e um de seus mais importantes discípulos, Subhuti. O Sutra do Diamante é o texto mais antigo relativo á ecologia profunda. Começa com uma pergunta de Subhuti: “Se filhas e filhos de boas famílias quiserem gerar a mente mais desperta e realizada, em que eles devem se basear e o que eles deveriam fazer para dominar seus pensamentos?”.

Isto é o mesmo que perguntar “Se eu quiser usar todo o meu ser para proteger a vida, que métodos e princípios eu devo usar?”.

O Buda respondeu “Devemos fazer o melhor possível para ajudar a cada ser vivo a cruzar o oceano do sofrimento. Mas, depois de todos terem chegado às margens da libertação, nenhum ser em absoluto foi carregado até o outro lado. Se você se deixar apanhar pelas idéias de eu, pessoa, ser viv ou tempo de vida, você não será um autêntico bodhisattva”.

Eu, pessoa, ser vivo e tempo de vida são as quatro noções que nos impedem de ver a realidade.

A vida é uma unidade, não precisamos cortá-la em pedaços e chamar este pedaço de “eu”. O que chamamos de eu é feito de elementos não-eu. Quando olhamos uma flor, por exemplo, podemos pensar que ela é diferente das coisas que são “não-flor”. Mas se olharmos com mais profundidade, poderemos ver que tudo no cosmos está na flor. Sem algum dos elementos não-flor – sol, nuvens, terra, jardineiro, minerais, rios e consciência – uma flor não pode existir. É por isto que o Buda ensina que o eu não existe. Temos que descartar todas distinções entre eu e não-eu. Como é que alguém pode proteger o meio-ambiente sem este insight?

A segunda noção do Sutra do Diamante nos recomenda jogar fora é a noção de pessoa, de ser humano. Isto também não é difícil. Ao olharmos para o ser humano, poderemos ver os ancestrais humanos, os ancestrais animais, os ancestrais vegetais e os ancestrais minerais. Poderemos ver que o humano é feito de elementos não-humanos. Usualmente, costumamos discriminar entre humanos e não-humanos, pensando que somos mais importantes que as outras espécies. Mas já que somos feitos de elementos não-humanos, para protegermos a nós mesmos temos que proteger todos os elementos não-humanos. Não existe outro jeito. Se você pensar que Deus criou os seres humanos à sua imagem e semelhança e que Ele criou todos os outros seres para uso deles, então você já está discriminando e tornando as pessoas mais importantes que os outros seres. Ao vermos que os seres humanos são desprovidos de eu, vemos também que ao cuidar do meio-ambiente (dos elementos não-humanos) cuidamos da humanidade. Temos que respeitar e proteger as outras espécies para podermos ter uma chance. A melhor maneira de tomar conta dos seres humanos de modo a que eles fiquem verdadeiramente saudáveis e felizes é tomar conta dos outros seres e do meio-ambiente.

Conheço ecologistas que não estão felizes com suas famílias. Eles trabalham duro para melhorar o meio-ambiente parcialmente por que querem escapar de sua vidas familiares infelizes. Mas se alguém não é feliz consigo mesmo, como poderá ajudar o meio-ambiente? Proteger os elementos não-humanos é proteger os seres humanos e proteger os seres humanos é proteger os elementos não-humanos.

A terceira noção que devemos quebrar é a noção de ser vivo. Pensamos que os seres vivos são diferentes dos objetos inanimados, mas , de acordo com o princípio do interser, seres vivos são compostos de seres não-vivos. Quando olhamos para dentro de nós, podemos ver os minerais e outros seres não-vivos. Por que discriminar contra aquilo a que chamamos de inanimado? Para proteger os seres vivos temos que proteger as pedras, o solo, os oceanos. Antes da bomba ser jogada sbre Hiroshima, existiam muitas bancos de pedra nos parques. Quando os japoneses estavam reconstruindo a cidade eles tiveram a sensação de que aquelas pedras estavam mortas. Então eles as levaram embora e enterraram-nas e trocaram-nas por pedras vivas. Não pense que essas coisas não são vivas. Os átomos estão sempre se movimentando. Elétrons se movem quase à velocidade da luz. De acordo com o ensinamento do budismo, átomos e consciência são eles mesmos a própria consciência. É por isso que essa discriminação entre seres vivos e não-vivos deve ser descartada.

A última noção é a de tempo de vida. Costumamos pensar que nossa vida começa num determinado ponto do tempo e que antes deste momento nossa ela não existia. Esta distinção entre vida e não-vida não é correta. A vida é feita de morte e a morte é feita de vida. Temos que aceitar a morte; ela torna a vida possível. As células do nosso corpo estão morrendo todos os dias, mas nunca pensamos em organizar um funeral para elas. A morte de uma célula permite o nascimento de outra. Vida e morte são dois aspectos da mesma realidade. Precisamos aprender a morrer em paz para que outros possam viver. Esta profunda meditação produz o não-medo, a não-raiva, o não-desespero, as forças que precisamos para nosso trabalho. Nau ausência do medo, mesmo que o problema seja grande não perderemos o controle. Saberemos dar pequenos e firmes passos.

Se aqueles que trabalham para proteger o meio-ambiente olharem profundamente para essas quatro noções, eles saberão como continuar e como agir. Eles terão energia suficiente e insight para ser um bodhisattva no caminho da ação.

Existe muito sofrimento no mundo e é importante que nós estejamos em contato com esse sofrimento para sermos solidários. Mas para sermos fortes, também precisamos abraçar os elementos positivos. Quando vemos um grupo de pessoas vivendo de maneira consciente, sorrindo e se comportando com amor, ganhamos confiança no futuro. Quando praticamos a respiraçao, o descanso, o caminhar e o trabalho conscientes, nós mesmos nos tornamos um elemento positivo na sociedade e inspiraremos confiança em todos que estão à nossa volta. Esta é a maneira de evitar que o desespero tome conta de nós. Também é uma maneira de ajudar as jovens gerações a não perderem a esperança. É muito importante que possamos viver o dia-a-dia de nossas vidas de tal modo a demonstrar que o futuro é possível.

Para produzir uma mudança real na situação ecológica global, nossos esforços devem ser harmoniosos e coletivos, baseados no amor e no respeito por nós mesmos e pelos outros, e pelos nossos ancestrais e futuras gerações. Se a raiva causada pela injustiça é a fonte de nossa energia, iremos provocar mais danos, coisas que iremos nos arrepender depois. De acordo com o budismo, a solidariedade (Karuna, NT) é a única fonte de energia que é útil e segura. Com a solidariedade, nossa energia nasce do insight; não é uma energia cega. Somente sentir compaixão, não é suficiente, temos que aprender a expressá-la. É por isso que o amor tem andar sempre junto com a compreensão. Compreensão e insight nos mostram como agir.

O termo “budismo engajado” foi criado para restaurar o verdadeiro significado do budismo. Budismo engajado é simplesmente o budismo aplicado em nosso dia-a-dia. Se não é engajado, não pode ser chamado budismo. As práticas budistas não devem ser feitas somente nos monastérios, centros de meditação e institutos budistas, mas em qualquer situação na qual nos encontremos. Budismo engajado significa atividades do dia-a-dia combinadas com a prática da plena consciência.

Existe uma real necessidade de levarmos o budismo para a sociedade, especialmente quando você se encontra em uma situação de guerra ou injustiça social. Durante a guerra do vietnã se tornou muito claro que deveríamos praticar o budismo engajado, para que a solidariedade e a compreensão pudessem se tornar parte da vida do povo. Quando sua vila é bombardeada e destruída e quando seus vizinhos se tornam refugiados, você não pode simplesmente continuar a praticar a meditação sentada na sala de meditação. Mesmo que o templo não tenha sido bombardeado e a sua sala de meditação esteja intacta, ainda assim você poderá ouvir os gritos das crianças feridase poderá ver a dor dos adultos que perderam suas casas. Como é que você pode continuar a se sentar lá de manhã cedo, à tarde e à noite? É por isso que você tem que encontrar um jeito de levar a sua prática para a vida cotidiana e sair para ajudar as outras pessoas. Você pode fazer tudo o que você puder para aliviar o sofrimento. Mesmo que você saiba que se abandonar a prática de sentar-se e caminhar com plena consciência, você não será capaz de retomá-la por um longo tempo.

É importante que ao mesmo tempo em que nos tornemos voluntários ou tomemos parte no ativismo ambiental, encontremos uma maneira de continuar nossa prática de respirar, caminhar e falar com plena consciência. Não nos deixemos cair na raiva ou no desespero ao refletir sobre o estado atual do mundo, ou quando confrontados com aqueles que se engajam no desperdício dos recursos naturais. Pelo contrário, podemos fazer de nossa vida um exemplo de vida simples. A escuta profunda e a fala amorosa podem nos ajudar a apoiar a transformação dos indivíduos e da sociedade e nutrir o despertar coletivo que irá salvar nosso planeta e nossa civilização.

Se quisermos ter sucesso na prática da fala amorosa, precisamos saber como lidar com nossas emoções quando elas nos chegam à superfície. Toda vez que a raiva, a frustração ou a tristeza sugirem, temos que ter a capacidade de lidar com elas. Isso não significa lutar com elas, suprimí-las ou expulsá-las. Nossa raiva e nosso desapontamento são parte de nós, não devemos fazer isso. Quando oprimimos a nós mesmos, cometemos um ato de violência contra nós mesmos. Se soubermos como retornar à respiração consciente, criaremos um ambiente de verdadeira presença e geraremos a energia do contato. Com essa energia reconheceremos e abraçaremos nossa tristeza, raiva ou desapontamento com bondade e amor.

Trabalho social e de ajuda realizados sem a prática da plena consciência não podem ser descritos como budismo engajado. Todos os que fazem esse trabalho correm o risco de se perder no desespero, na raiva ou na frustração. Se você estiver realmente praticando o budismo engajado, então você saberá preservar-se a si próprio como praticante, ao mesmo tempo em que faz coisas para ajudar as pessoas no mundo. Budismo verdadeiramente engajado é, antes de tudo, a prática da plena consciência em tudo o que fizermos.

A prática da plena consciência nos ajuda a ficarmos vigilantes sobre o que está acontecendo. Uma vez sejamos capazes de olhar profundamente no sofrimento e reconhecer sua raízes, seremos motivados a agir e a praticar. A energia que precisamos não é o medo ou a raiva ou mas a energia da compreensão e da solidariedade. Não há necessidade de culpar ou condenar. Aqueles que estão destruindo a si mesmos, a sociedade e o planeta não o fazem intencionalmente. A dor e a solidão deles é avassaladora e eles querem escapar. Eles precisam de ajuda e não de punição. Somente a compreensão e a solidariedade no nível coletivo pode nos libertar.

voltar ao blog Interser

Nenhum comentário: