terça-feira, 8 de julho de 2008

Nota de Tradução

Já li diversas vezes em textos do Thây que a tradução de karuna por "compaixão" não era uma boa tradução. No livro "Ensinamentos Sobre o Amor" ele nos diz explicitamente:

"O segundo do aspecto do amor verdadeiro é karuna, a intenção e a capacidade de aliviar e transformar o sofrimento e abrandar as tristezas. Em geral, a tradução de karuna é compaixão, mas isso não está inteiramente correto. 'Compaixão' compõe-se de com (junto com) e paixão (sofrimento). Mas não precisamos sofrer para eliminar a dor de outra pessoa. Os médicos, por exemplo, podem aliviar a dor de seus pacientes sem que eles padeçam da mesma doença. Se sofrermos muito, poderemos ficar arrasados e incapazes de ajudar os outros".

Outros tradutores, os que são budistas pelo menos, também sentem o mesmo incômodo ao usar a palavra compaixão, principalmente devido ao fato de ela ser carregada de conotações cristãs tradicionais ligadas à piedade, etc. Além disso, a palavra compaixão carrega um sentido altamente dualista que fere a unidade budista original, isolando o sujeito (aquele que age com compaixão) e o objeto (aquele que interage na ação), fazendo-nos esquecer de que ambos intersão, segundo verbo cunhado por Thây (interbeing/interser), que ambos são interdependentes.

Uma senhora certa vez criticou o meu uso dessa tradução dizendo que poderia sentir compaixão por um assassino, mas jamais sentiria solidariedade. Essa crítica só fez acender mais ainda um alerta para o uso indevido da palavra "compaixão" em um contexto não-cristão.

Tenho percebido que quando alguém diz que sente compaixão por alguém que comete um crime, mesmo que horrendo, na verdade ela está pensando "Que Deus tenha piedade dessa alma, eu não posso fazer nada!". Mas o Budismo não encara dessa maneira, o budista estende a mão a essa pessoa, por que sabe que ela está sofrendo e não consegue lidar com o seu sofrimento. E essa pessoa pode qualquer um mesmo, eu, você, Hitler, Thich Nhat Hanh, o casal Nardoni, a moça que matou os pais e assim por diante.

O praticante budista sabe que nós mesmos carregamos essas sementes que espalham terror, guerra e morte em nós mesmos, ao lado das sementes de amor, fraternidade, bondade, liberdade e felicidade que devemos cultivar.

Por outro lado, a palavra solidariedade se encaixa perfeitamente na definição budista tradicional de karuna. Solidariedade vem da palavra solidário que por sua vez vem da palavra latina solidu (sólido). É interessante notar que é raro alguém se lembrar que a palavra solidariedade tem a mesma raiz de solidez – e me parece óbvio que a solidariedade só pode ser praticada se houver solidez. Uma palavra que se baseia em solidez e compartilha, inclusive, a mesma raiz, em minha opinião, só pode ser a palavra mais adequada para traduzir a palavra karuna. E com a vantagem de não ser trazer em si sentido religioso algum (sei que isso pode ser também uma desvantagem, para alguns).

Em todos os seus textos e palestras, Thây sempre enfatiza o fato de que para uma ação ser realmente “compassiva”, ou seja, ser impregnada por karuna, é preciso solidez e estabilidade – mesmo na curta citação acima isso é claro. Solidez é necessária para que ocorra a transformação do sofrimento, a libertação, a felicidade. Não podemos simplesmente nos lançar a ajudar os outros, temos que cultivar a estabilidade e a solidez em nós mesmos para não sermos arrasados pela dor e sofrimento dos outros, para sermos capazes de ajudá-los a transformar seu sofrimento tal como fizemos nós mesmos.

No texto Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, o filósofo André Comte-Sponville nos diz:

“... ser solidário é pertencer a um conjunto in solido, como se dizia em latim, isto é, “para o todo”. Assim devedores são ditos solidários, na linguagem jurídica, se cada um pode e deve responder pela totalidade da soma que tomou emprestada coletivamente. Isso tem suas relações com a solidez, de que a palavra provém: um corpo sólido é um corpo em que todas as partes se sustentam”.


Talvez essa não seja a melhor solução, talvez fosse melhor recorrer ao um neologismo. Mas acho que é melhor usar expressões consagradas pelo uso do que criar novas palavras que podem criar mais confusão e dar um ar demasiado intelectual aos textos que, essencialmente, têm finalidade prática e não especulativa.

Por favor, se você não concordar com a minha visão pessoal, basta substituir mentalmente a palavra solidariedade por compaixão de novo para entrar em contato com o sentido mais adequado à sua prática – pelo menos era isso que eu fazia (secretamente). Agora torno pública a minha interpretação.

3 comentários:

Anônimo disse...

Perfeito!! Muito grata pelo esclarecimento do sentido desta palavra: compaixao.

Anônimo disse...

Gostei muito do esclarecimento sobre a palavra compaixão. Ao ler a postagem, senti que, a meu ver, usarei então a palavra compreensão, pois ao compreendermos o que leva uma pessoa a causar sofrimento ou sofrer:o meio em que foi criada, nível cultural, sócio econômico, base moral e até grau de mentalidade, se observarmos tudo isto, creio que não sofreremos junto (compaixão), mas saberemos compreender e como ajudar!

aleph3 disse...

Não conhecia o Monge Peregrino Thây, e as palavras seriam inúteis para tentar descrever a alegria que senti ao assistir um vídeo deste ser iluminado. Passei a selecionar os textos e imagens (vídeos) de Thây, colocando-os em FAVORITOS. Sou um buscador recente e anteriormente minha mente estava voltada para a ilusão dos sentidos (TV, divertimentos, comidas e bebidas, etc, etc). Mas interiormente eu sentia um forte desejo de saber mais sobre "quem somos, de onde viemos, o que estamos fazendo aqui, e principalmente: como podemos nos tornar uma criatura mais humana e solidária..." e acredito que meu encontro com Thây não tenha sido uma coincidência, pois era justamente o que eu estava buscando que ele está ensinando.

Toninho Claro - Lins, SP