domingo, 15 de julho de 2007

O Meio de Vida Correto

O Meio de Vida Correto
(Extraído do livro "A Essência dos Ensinamentos de Buda")

Para praticar o Meio de Vida Correto (Samyag Ajiva), é necessário encontrar uma forma de ganhar a vida que não represente uma transgressão aos ideais de amor e solidariedade. A forma pela qual você se sustenta pode ser uma expressão do seu ser mais profundo ou pode ser uma fonte de sofrimento para você e para os outros.

Os sutras costumam dizer que o Meio de Vida Correto é ganhar a vida sem precisar transgredir nenhum dos Cinco Treinamentos da Atenção Plena: não vender armas, não vender escravos, não vender carne, álcool, drogas, nem venenos, não fazer profecias e nem dizer a sorte. Monges e monjas devem tomar cuidado para não fazerem aos leigos pedidos exagerados em relação aos quatro requisitos básicos, que são remédios, alimentos, roupas e hospedagem, e para não possuírem coisas materiais além de suas necessidades imediatas. Ao procurarmos estar conscientes em todos os momentos, tentamos ter uma ocupação que seja benéfica para os seres humanos, os animais, as plantas e a terra ou, pelo menos, uma ocupação que prejudique pouco. Vivemos em uma sociedade na qual os empregos costumam ser difíceis de obter, mas se nosso emprego prejudicar a vida de alguma forma, então devemos procurar outro. Nossa atividade diária tanto pode alimentar a compreensão e a solidariedade quanto pode ajudar a destruí-las. Temos sempre que ter consciência das consequências, imediatas ou remotas, do nosso trabalho. Muitas indústrias modernas são prejudiciais aos seres humanos e à natureza, mesmo aquelas que produzem alimentos, e os pesticidas químicos e fertilizantes destróem o meio ambiente. Por isso a prática do Meio de Vida Correto é muito difícil para os fazendeiros. Se não usarem produtos químicos, talvez tenham dificuldades para se manter comercialmente competitivos. Este é apenas um entre muitos exemplos. Ao exercer sua profissão, respeite os Cinco Treinamentos da Atenção Plena. Um trabalho que de alguma forma envolva morte, roubo, má conduta sexual, mentiras ou venda de drogas ou álcool não é um Meio de Vida Correto. Se sua empresa polui os rios ou o ar, trabalhar neste lugar não é um Meio de Vida Correto. Fabricar armas ou lucrar com as superstições dos outros também não são Meios de Vida Corretos. As pessoas têm superstições e acreditam que seu destino está escrito nas estrelas ou na palma das mãos. A verdade é que ninguém pode ter a certeza absoluta sobre o que acontecerá no futuro, e ao praticar a atenção plena adquirimos o poder de alterar o destino previsto pelos astrólogos. Além disso, as profecias contribuem para que fatos preditos acabem se tornando realidade.

Compor ou executar obras de arte também pode ser um meio de sustento. Um compositor, escritor, pintor, músico, bailarino ou ator têm efeito direto na consciência coletiva. Qualquer obra de arte é, em grande parte, um produto da consciência coletiva. Portanto o artista deve praticar a atenção plena para que se trabalho ajude aqueles que entrem em contato com ele a praticar também a atenção plena. Um jovem que queria aprender a desenhar flores de lótus foi a um mestre e pediu para ser seu aprendiz. O mestre o conduziu até um lago de lótus e o convidou a se sentar ali. O jovem viu as flores desabrochando quando o sol estava alto e observou os botões se fechando quando a noite chegava. Na manhã seguinte, fez a mesma coisa. Quando uma flor de lótus murchou e suas pétalas caíram na água, ele observou o caule, o estame e o restante da flor, e depois passou a observar outra flor. Fez isso durante dez dias. No décimo primeiro dia, o mestre preguntou: “você está pronto?” e ele respondeu: “vou tentar”. O mestre lhe deu um pincel, e apesar de ter um estilo infantil, o jovem desenhou um lótus absolutamente lindo. Ele havia se tornado o lótus e o desenho simplesmente brotou de dentro dele. A ingenuidade em matéria técnica era evidente, mas uma beleza profunda estava retratada ali. O Meio de Vida Correto não é apenas uma questão de escolha pessoal. Ele representa o nosso carma coletivo. Por exemplo, se sou um professor primário, e acho que ensinar as crianças a ter mais amor e compreensão é uma grande profissão, recusaria se alguém me pedisse para parar de ensinar e me transformasse, por exemplo, em um açougueiro. Mas ao meditar na interdependência das coisas, vejo que o açougueiro não é o único responsável pela matança de animais. Talvez a nossa opinião seja a de que o modo de vida do açougueiro é errado e o nosso é o certo, mas se nós não comêssemos carne ninguém precisaria matar animais. O Meio de Vida Correto, na verdade, é uma questão coletiva. O trabalho de cada pessoa afeta as outras. Os filhos do açougueiro podem se beneficiar com o professor, mas os filhos do professor, que comem carne, também são responsáveis pelo sustento do açougueiro. Vamos imaginar que um fazendeiro que se sustenta vendendo carne bovina queira receber os Cinco Treinamentos da Plena Consciência. À luz do primeiro treinamento, ele começa a se perguntar o que tem feito para proteger a vida. Reflete que proporcionou ao seu gado as melhores condições possíveis de bem-estar, chegando mesmo a operar seu próprio matadouro, para que não houvesse crueldade desnecessária inflida aos animais na hora de abatê-los. Ele herdou a fazenda do pai e, além disso, tem uma família pra sustentar. É um dilema. O que fazer? Suas intenções são boas, mas ele herdou dos ancestrais não apenas a fazenda, mas também a força e a energia de seus hábitos. Cada vez que uma vaca é morta, isso deixará uma impressão na sua consciência, que retornará a ele em sonhos, durante a meditação ou no momento da morte. Tomar conta do gado da melhor maneira possível enquanto os animais estão vivos é de fato um Meio de Vida Correto. Ele deseja tratar seus animais com o máximo de bondade, mas também deseja a segurança proprocionada por uma renda estável para ele e para sua família.
Este homem deve continuar a contemplar todas as questões com profundidade, praticando continuamente a plena consciência em companhia de sua Sangha local. À medida em que sua compreensão se aprofunda, ele acabará encontrando uma forma de sair desta situação em que é obrigado a matar para viver.

Tudo o que fazemos é parte de nosso esforço de praticar o Meio de Vida Correto. Trata-se de um assunto muito mais amplo do que apenas o meio pelo qual obtemos nossa renda mensal. Talvez não possamos ter um Meio de Vida cem por cento correto, mas podemos decidir que vamos caminhar na direção da redução do sofrimento e do aumento de solidariedade.

Milhões de pessoas, por exemplo, ganham a vida na indústria de armas, ajudando, direta ou indiretamente, a fabricar armamentos convencionais ou nucleares. Os Estados Unidos, a Rússia, a França, a Inglaterra, a China e a Alemanha são os principais fornecedores de armas do mundo. A seguir, estas armas são vendidas para os países do Terceiro Mundo, onde o povo não precisa de armas e, sim, de comida. Fabricar ou vender armas não é um Meio de Vida Correto, mas a responsabilidade por essa situação pertence a nós todos – políticos, economistas e consumidores. Nunca promovemos um grande debate nacional sobre esta questão, que é tão importante. Precisamos discutir isso, e precisamos também continuar a gerar novos empregos, para que ninguém seja pbrigado a viver dos lucros da fabricação de armas. Se você exerce uma profissão em que há espaço para a realização de seu ideal de solidariedade, fique grato. E, por favor, ajude a criar empregos para que outros também possam viver de forma correta, simples e sadia. Use toda a sua energia para tentar melhorar a situação geral.

Praticar o Meio de Vida Correto significa praticar a Atenção Plena Correta. Cada que o telefone tocar, considere-o como a campainha da atenção. Pare tudo o que estiver fazendo, inspire e expire conscientemente, e a seguir, atenda o telefone. A sua forma de atender o telefone personificará o Meio de Vida Correto. Precisamos discutir entre nós como praticar a atenção plena em nosso local de trabalho e em todos os outros locais. Será que respiramos ao ouvir o telefone? Sorrimos quando estamos atendendo a outros? Caminhamos com atenção plena quando nso deslocamos de uma reunião para outra? Praticamos a Fala Correta? Fazemos um relaxamento total depois de muitas horas de trabalho pesado? Vivemos de forma a encorajar as pessoas a serem pacíficas e felizes, e a trabalhar para incentivar a paz e a felicidade? Estas perguntas são muito importantes, e são todas de ordem prática. Trabalhar para incentivar este tipo de pensamento e de ação, além da solidariedade, significa praticar o Meio de Vida Correto.

Se alguém tem uma profissão que contribui para que seres vivos sofram e oprimam os outros, isso acabará por contaminar a sua consciência, da mesma forma que quando poluímos o ar que depois iremos respirar. Muitas pessoas enriquecem vivendo de forma incorreta. Depois vão a um templo ou igreja e fazem doações. Estas doações se originam de sentimentos de culpa e medo, e não do desejo de fazer os outros felizes. Quando um templo ou igreja recebe grandes doações, as pessoas que recebem os recursos devem entender isso, e devem tentar ajudar na transformação do doador, mostrando-lhe como abandonar um Meio de Vida incorreto. Estas pessoas necessitam, mais do que qualquer outra coisa, dos ensinamentos do Buda.

À medida que vamos estudando e praticando o Nobre Caminho Óctuplo, começamos a entender que cada etapa do caminho está contida nos outros sete. Vemos também que cada etapa contém dentro de si as Nobres Verdades da existência, origem e cessação do sofrimento.

Ao praticar a Primeira Nobre Verdade, reconhecemos nosso sofrimento e o chamamos pelo seu nome correto – depressão, ansiedade, medo ou insegurança. A seguir, olhamos de frente para ele, para descobrir em que se baseia, e isso representa a prática da Segunda Nobre Verdade. Essas duas práticas contêm os primeiros dois elementos do Nobre Caminho Óctuplo, ou seja, a Compreensão Correta e o Pensamento Correto. Todos nós temos uma tendência a fugir do sofrimento, mas quando começamos a praticar o Nobre Caminho Óctuplo criamos coragem para passar a encarar o sofrimento de forma diferente. Utilizamos a Atenção Plena Correta e a Concentração Correta para observar o sofrimento de frente, com coragem. A prática de olhar com profundidade e enxergar com clareza representa a Compreensão Correta, que nunca nos mostrará uma única razão para o sofrimento, mas centenas de camadas de causas e condições: sementes que herdamos de nossos pais, avós e ancestrais;sementes dentro de nós nutridas por amizades ou pela situação econômica e política de nosso país; além de muitas outras causas e condições.

Agora chegamos ao ponto onde queremos fazer alguma coisa para diminuir o nosso sofrimento. Depois de identificar o que alimenta o nosso sofrimento, acharemos uma forma de deixar de ingerir esse nutriente, quer se trate de um comestível, de alimento dos sentidos, de nutriente recebido das nossas intenções, ou do alimento da nossa consciência. Fazemos isso praticando a Fala Correta, a Ação Correta e o Meio de Vida Correto, sempre lembrando que a Fala Correta significa ouvir com atenção. Para isso nos guiamos pelos Treinamentos da Atenção Plena. Ao praticar os treinamentos da Atenção Plena entenderemos que devemos falar, agir e trabalhar sempre com a Atenção Plena Correta. A Atenção Plena Correta nos avisa quando algo está em desacordo com a Fala Correta ou com a Ação Correta. Quando praticamos a Atenção Plena Correta e o Esforço Correto, o resultado é a Concentração Correta, o que fará emergir a compreensão ou, em outras palavras, a Compreensão Correta. Na verdade não é possível praticar uma única etapa do Nobre Caminho Óctuplo sem praticar todos os outros sete. Essa é a natureza interdependente de tudo, que também se manifesta nos ensinamentos deixados por Buda.

PS: Compaixão = solidariedade (ver Nota do Tradutor)

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