sexta-feira, 2 de março de 2007

Feliz Continuação

Feliz Continuação
(Capítulo do livro "O Coração da Compreensão")
Thich Nhat Hanh

“Ouça, Shariputra, todos os darmas trazem a marca da vacuidade. Eles não são produzidos, nem destruídos.”

“Darmas” , aqui, significa “coisas”. Um ser humano é um “darma”. Uma árvore é um darma. Tudo que pode ser concebido é um darma. Assim, quando dizemos “Todos os darmas estão marcados pela vacuidade”, estamos dizendo que todas as coisas têm a vacuidade como sua própria natureza. E é por isso que elas podem existir. Há um bocado de alegria nesta afirmação. Significa que nada pode nascer, nada pode morrer. Avalokita* disse algo extremamente importante.

Todos os dias em nossa vida, vemos nascimento e vemos morte. Quando uma pessoa nasce, uma certidão de nascimento é impressa para ela. Depois que morre, um atestado de óbito é feito para que seja enterrada. Estes certificados confirmam a existência do nascimento e da morte. Mas Avalokita disse, “Não, não há nascimento e morte.” Nós precisamos olhar mais profundamente para vermos se sua afirmação é verdadeira.

Qual foi a data em que você nasceu, sua data de nascimento? Antes desta data você já existia? Você já estava lá antes de nascer? Deixe-me ajudá-lo. Nascer significa: de nada você se tornou alguma coisa. Minha pergunta é: antes de você nascer, você já estava lá?

Imagine uma galinha prestes a pôr um ovo. Antes dela “dar à luz”, você acha que o ovo já estava lá? Sim, é claro. Estava lá dentro. Você também estava dentro antes de estar do lado de fora. Isto quer dizer que antes de você nascer, você já existia - dentro da sua mãe. O fato é que se algo já está lá, não precisa nascer. Nascer significa que do nada você vem a ser alguma coisa. Se você já é algo, o que adianta nascer?

Então, a sua assim chamada data de nascimento é, na verdade, o seu dia da continuação. Na próxima vez que você comemorar aniversário você pode dizer “Feliz Dia da Continuação”. Eu penso que nós podemos ter um conceito melhor de quando nascemos. Se voltarmos nove meses, ao momento de nossa concepção, teremos uma data mais adequada para colocar em nossas certidões de nascimento. Na China, e também no Vietnam, quando alguém nasce, já é considerado como tendo um ano de idade. Assim, dizemos que começamos a existir no momento da nossa concepção no útero da nossa mãe, e escrevemos aquela data em nossa certidão.

Porém, a questão permanece: Mesmo antes daquela data, você existia ou não? Se você disser “Sim”, penso que você estará correto. Antes da sua concepção, você já estava lá, talvez metade em seu pai, metade em sua mãe. Isto porque do nada nunca poderíamos vir a ser alguma coisa. Você pode citar algo que alguma vez foi um nada? Uma nuvem? Você pensa que uma nuvem pode nascer do nada? Antes de se tornar uma nuvem, ela era água, talvez fluindo como um rio. Não era um nada. Você concorda?
Nós não podemos conceber o nascimento de coisa alguma. Há apenas continuação. Por favor, olhe para trás ainda além e você verá que você não somente existia no seu pai e na sua mãe, mas você também existia em seus avós e seus bisavós. Quando eu olho mais profundamente, eu vejo que, numa vida anterior, eu fui uma nuvem. Isto não é poesia, isto é ciência. Porque eu digo que numa vida anterior eu fui uma nuvem? Porque ainda sou uma nuvem. Sem a nuvem, eu não posso estar aqui. Eu sou a nuvem, o rio, e o ar neste exato momento, e assim eu sei que no passado fui uma nuvem, um rio e o ar. E eu fui uma rocha. Eu fui os minerais na água. Isto não é uma questão de crença na reencarnação. Isto é a história da vida na terra. Nós já fomos gás, raios de sol, água, fungos e plantas. Nós já fomos seres unicelulares. O Buda disse que numa de suas vidas prévias ele tinha sido uma árvore. Ele fora um peixe e um cervo.

Não se trata de superstição. Cada um de nós já foi uma nuvem, um cervo, um pássaro, um peixe, e continuamos a ser estas coisas, não apenas em vidas anteriores.

Não é este o caso, de jeito nenhum, com o nascimento. Nada pode nascer e, também, nada pode morrer. Foi isto o que disse Avalokita. Você acha que uma nuvem pode morrer? Morrer significa que de alguma coisa você se tornou nada. Você acha que nós podemos fazer de alguma coisa um nada? Vamos voltar para a nossa folha de papel. Nós podemos ter a ilusão de que para destruí-la basta acendermos um fósforo e queimá-la. Mas, se nós queimamos uma folha de papel, parte dela virará fumaça e a fumaça subirá e continuará a existir. O calor produzido na combustão do papel irá entrar no cosmos e penetrar outras coisas, pois o calor será a próxima vida do papel. As cinzas formadas se tornarão parte do solo e a folha de papel, em sua próxima vida, poderá ser uma nuvem e uma rosa ao mesmo tempo. Nós temos de estar muito cuidadosos e atentos para percebermos que esta folha de papel nunca nasceu, e que ela nunca morrerá. Ela poderá assumir outras formas de ser, mas não somos capazes de transformá-la em um nada absoluto.

Tudo é assim, mesmo você e eu. Nós não estamos sujeitos ao nascimento e à morte. Um mestre Zen poderia dar a um estudante um tema de meditação do tipo: “Como era seu rosto antes dos seus pais nascerem?” Este é um convite para partir na jornada do reconhecimento de si mesmo. Se você se sair bem, você poderá ver as suas vidas prévias bem como as suas vidas futuras. Por favor, lembre-se de que não estamos falando sobre filosofia, nós estamos falando sobre realidade. Olhe para sua mão e pergunte a si mesmo: “Desde quando minha mão tem estado por aí?” Se eu olhar profundamente na minha mão, eu poderei ver que ela tem estado por aí há muito tempo, mesmo mais de 300.000 anos. Eu verei muitas gerações de ancestrais nela, não só no passado, mas no momento presente, ainda vivas. Eu sou apenas a continuação. Eu nunca morri antes. Se eu tivesse morrido mesmo uma única vez, como a minha mão poderia estar aqui ainda?

O cientista francês Lavoisier, disse: “Nada é criado e nada é destruído”. É exatamente o mesmo que diz o Sutra do Coração. Mesmo os melhores cientistas contemporâneos não podem reduzir algo tão pequeno como um grão de poeira ou um elétron ao nada. Uma forma de energia só pode se transformar em outra forma de energia. Uma coisa nunca pode se tornar nada, e isto inclui o grão de poeira.

Usualmente, dizemos que os seres humanos vieram do pó e ao pó voltarão, e isto não soa muito reconfortante. Nós não queremos retornar ao pó. Há uma discriminação aqui de que os humanos são muito valiosos e que pó não tem qualquer valor. Mas, os cientistas nem mesmo sabem o que é um grão de pó! É ainda um mistério. Imagine um átomo daquele grão de pó, com elétrons viajando em torno do núcleo a 290.000 km por segundo. É muito excitante. Retornar ao grão de pó será uma aventura extremamente excitante!

Algumas vezes nós temos a impressão de que compreendemos o que é um grão de poeira. Chegamos mesmo a fingir que compreendemos um ser humano - um ser humano que nós dizemos que retornará ao pó. Pelo fato de vivermos com alguém por 20 ou 30 anos, nós temos a impressão de que sabemos tudo sobre esta pessoa. Então, enquanto dirigimos o carro com aquela pessoa sentada ali bem ao nosso lado, nós pensamos sobre outras coisas. Não estamos mais interessados nela. Quanta arrogância! A pessoa sentada ali, ao nosso lado, é na verdade um mistério! Temos apenas a impressão de conhecê-la, mas não sabemos nada ainda. Se olharmos com os olhos de Avalokita, veremos que mesmo um fio de cabelo daquela pessoa é o cosmos inteiro. Um fio de cabelo na cabeça dela pode ser a porta que se abre para a realidade última. Um grão de poeira pode ser o Reino dos Céus, a Terra Pura. Quando você entender que você, o grão de poeira e todas as coisas intersão, você compreenderá que assim é. Nós devemos ser humildes. “Dizer que você não sabe (ou não conhece) é o começo do conhecimento”, reza um provérbio Chinês.

Num dia de outono, eu estava num parque absorto na contemplação de uma folha muito pequena, mas muito bonita, com a forma de um coração. Sua coloração era quase vermelha e ela estava mal dependurada no galho, quase pronta para cair. Eu passei um longo tempo com ela, e fiz a ela uma porção de perguntas. Eu descobri que a folha tinha sido uma mãe para a árvore. Geralmente, nós imaginamos que a árvore é a mãe e que as folhas são como que filhos, porém enquanto olhava para a folha eu vi que ela é também uma mãe para a árvore. A seiva que as raízes absorvem constitui-se apenas de água e minerais, não suficientemente boas para nutrir a árvore, assim ela distribui a seiva para as folhas. E as folhas assumem a responsabilidade de transformar esta seiva bruta em seiva elaborada e, com a ajuda do sol e do ar, remetê-la de volta para a nutrição da árvore. Portanto, as folhas são também uma mãe para a árvore.

E como a folha está ligada à árvore através de uma haste, a comunicação entre elas é fácil de ver.
Nós não temos mais uma haste ligando-nos a nossa mãe, mas quando estávamos no seu útero, nós tínhamos uma haste muito longa, um cordão umbilical. O oxigênio e a nutrição que necessitávamos vinha a nós através daquela haste. Infelizmente no dia que chamamos de nosso aniversário, ela foi cortada e nós recebemos a ilusão de que somos independentes. Isto é um engano. Nós continuamos a depender de nossa mãe por um tempo muito longo, e também tivemos muitas outras mães. A Terra é a nossa mãe. Nós temos muitíssimas hastes ligando-nos à nossa mãe Terra. Há uma haste ligando-nos com a nuvem. Se não houver nuvem, não haverá água para bebermos. Nós somos feitos de pelo menos setenta por cento de água e a haste entre a nuvem e nós está realmente ali. Este também é o caso com o rio, a floresta, o lenhador e o agricultor. Há centenas de milhares de hastes ligando-nos a todas as coisas no cosmos, e conseqüentemente nós podemos existir. Você vê o elo entre você e eu? Se você não estiver aí, eu não estarei aqui. Isto é certo. Se você ainda não vê isto, olhe mais profundamente e tenho certeza de que você vai ver. Como eu disse, isto não é filo sofia. Você realmente tem de ver.

Eu perguntei à folha se ela estava assustada por ser outono e todas as outras folhas estarem caindo. A folha respondeu-me: “Não. Durante toda primavera e verão eu estive muito viva. Eu trabalhei duro e ajudei a nutrir a árvore, e muito de mim está na árvore. Por favor, não diga que eu sou apenas esta forma, pois a forma de folha é somente uma pequeníssima parte de mim. Eu sou a árvore toda. Eu sei que já estou dentro da árvore e, quando voltar para o solo, continuarei a nutri-la. Por isto é que eu não me preocupo. Assim que deixar este ramo e flutuar até o chão, acenarei para a árvore e direi a ela: Eu verei você novamente muito em breve!”

De repente, eu vi um tipo de sabedoria muito semelhante ao contido no Sutra do Coração. Você tem de ‘ver' a vida. Você não deveria dizer, vida da folha, mas sim falar apenas da vida na folha e vida na árvore. Minha vida é apenas Vida, e você pode vê-la em mim e na árvore. Naquele dia, havia uma brisa soprando e, após algum tempo, eu vi a folha deixar o ramo e descer flutuando até o solo, dançando alegremente, porque, enquanto flutuava, ela já se via ali, na própria árvore. Eu fiquei muito feliz. Eu cumprimentei-a inclinando minha cabeça. Eu sabia que tínhamos bastante a aprender com a folha porque ela não tinha medo - ela sabia que nada pode nascer e que nada pode morrer.

A nuvem no céu também não ficará assustada. Quando a hora chegar, a nuvem se transformará em chuva. É divertido virar chuva, cair fazendo barulho, e incorporar-se ao Rio Mississipi, ou ao Rio Amazonas, ou ao Rio Mekong, ou cair sobre os vegetais e, mais adiante, tornar-se parte de um ser humano. É uma aventura muito excitante. A nuvem sabe que, se cair sobre a terra, ela poderá tornar-se parte do oceano. Então, a nuvem não está assustada. Somente os seres humanos ficam assustados.

Uma onda do oceano tem um começo e um fim, um nascimento e uma morte. Mas, Avalokitesvara nos diz que a onda é vazia. A onda é cheia de água, mas é vazia de um ‘self' separado. Uma onda é uma forma que foi tornada possível graças à existência do vento e da água. Se uma onda vê apenas a sua forma, com seu início e fim, ela terá medo do nascimento e da morte. Porém, se a onda vê que ela é água, identifica-se com a água, então ela ficará emancipada do nascimento e da morte. Cada onda nasce e irá morrer, mas a água está livre de nascimento e morte.

Quando eu era uma criança, costumava brincar com um caleidoscópio. Eu pegava um tubo com alguns cacos de vidro, girava um pouco, e tinha muitas visões maravilhosas. Cada vez que fazia um pequeno movimento com meus dedos, uma imagem desaparecia e outra surgia. Eu não chorava de modo algum quando o primeiro espetáculo desaparecia porque eu sabia que nada havia se perdido. Uma outra bela imagem sempre se seguia. Se você for a onda e se tornar um com a água olhando para o mundo com os olhos da água, então você não sentirá medo de subir e descer, subir e descer... Mas, por favor, não se satisfaça com mera especulação ou apenas com o que estou dizendo. Você mesmo precisa entrar, provar, ser um com todas as coisas. Isto pode ser feito através da meditação, não apenas na sala de meditação, mas ao longo de sua vida diária. Enquanto você cozinha uma refeição, arruma a casa, enquanto sai para caminhar, você pode olhar para as coisas e tentar vê-las na natureza da vacuidade. Vacuidade é uma palavra otimista; não é pessimista, absolutamente. Quando Avalokita, em sua profunda meditação sobre a Perfeita Compreensão, foi capaz de ver a natureza da vacuidade, repentinamente ele sobrepujou todo o medo e dor. Eu tenho visto pessoas morrerem muito pacificamente, com um sorriso, porque elas vêem que nascimento e morte são apenas ondas na superfície do oceano, ou apenas o espetáculo no caleidoscópio.

Assim, você vê que há muitas lições que podemos aprender com a nuvem, a água, a onda, a folha e o caleidoscópio; e com tudo o mais que há no cosmos, também. Se você olhar cuidadosamente para qualquer coisa, profundo o suficiente, você descobrirá o mistério do interser e, assim que você tenha visto isso, nunca mais estará sujeito ao medo - medo do nascimento, ou da morte. Nascimento e morte são apenas idéias que temos em nossas mentes, e estas idéias não podem ser aplicadas à realidade. É exatamente o que ocorre com a idéia de “acima” e “abaixo”.

Nós estamos muito seguros de que quando apontamos com a mão para o alto é “acima”, e quando na direção oposta é “abaixo”. O céu é acima, o inferno é abaixo. Mas, as pessoas que, neste exato momento, estão sentadas do outro lado do planeta deverão discordar, porque a idéia de acima e abaixo não se aplica ao cosmos, exatamente como a idéia de nascimento e morte.

Então, por favor, continue a olhar para trás e você verá que você sempre esteve aqui. Vamos olhar juntos e penetrar na vida de uma folha, até nos tornarmos um com ela. Vamos penetrar e ser um com a nuvem, ou com a onda, até compreedermos a nossa própria natureza como água e ficarmos livres do nosso medo. Se olharmos bem profundamente, nós transcenderemos nascimento e morte.

Amanhã eu continuarei a existir. Mas você terá de estar muito atento para me ver. Eu serei uma flor, ou uma folha. Eu estarei nestas formas e direi “Alô!” para você. Se você estiver suficientemente atento, você vai me reconhecer; e você poderá me cumprimentar. Eu ficarei muito feliz.

*Avalokita - o Bodhisattva da Solidariedade, às vezes representado como um ser de mil braços. Dependendo da tradição, pode ter uma imagem masculina ou feminina.

PS: Solidariedade = Compaixão (Ver Nota do Tradutor)
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Um comentário:

Unknown disse...

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